Caramba,
trabalhei tanto, não me lembro de mais nada que não seja trabalhar… e mesmo
assim vim parar aqui…. Eu merecia o Céu
por tanto ter trabalhado! Mas que raio
então deveria ter feito? Não matei, não
roubei… então que esperam de mim? Que
querem aqueles que me cercavam desde que morri? Não entendo!! Sou perseguido
como um criminoso…. Bem se me perseguem a mim que nunca matei ninguém… os
assassinos então morrem e são mortos logo a seguir não? Não entendo, sou tratado como um
assassino! Não matei ninguém!!! Porque me gritavam então? Que me queriam?
Porque me chamavam assassino sem coração?
Mas que é lá isso, não esfaqueei ninguém, nem o ladrão que me queria
roubar a taberna! Não entendo! Vivi
apenas para o trabalho! Para a minha
velhice, e afinal morri e não trouxe nada, bonito! Nem velhice, nem dinheiro… sim senhor, e aqui estou, sem nada, sem fé…
e envergonhado… sei lá quanto tempo me
andaram a gritar “assassino, coração de pedra…
Eu não matei ninguém com as minhas mãos, nem mandei matar…
Se queriam
beber, era problema deles! Eu só servia
o vinho! Se não pagavam não bebiam, e se
alguns fiados fiz, era meu direito receber e pronto, também comprava o vinho. A água que coloquei no vinho também não matou
ninguém, embebedavam-se menos até!
Eu sei
porque me atacavam e tentavam humilhar… no fundo eu sei… nos tempos de miséria
e sem trabalho, muitos choravam ali as suas mágoas e desesperos, mulheres
doentes, filhos pequenos com fome… não havia trabalho, mau tempo seguido… mas eu também tinha avida para ganhar… eu
também podia precisar e não tinha família… e se ajudasse um, tinha de ajudar
outros… muitos com gratidão vinham-me beijar as mãos, os outros perguntavam
logo porque e tentavam não pagar as contas… não podia viver assim… eu tinha uma
taberna, também precisava de ganhar a vida… era uma vida pobre…. Nunca se sabe
se amanhã não estaria eu numa cama… lá
cai, até parece que adivinhava, mas também depressa morri…
Dei sempre
um pãozito á velhota que morava por detrás da taberna… Juliana, Senhora de
muita idade, desdentada, pequena e muito curvada. Mulher muito calada, falava com os olhos, com
gestos…. Poucas vezes lhe ouvi a fala. Vivia sozinha como eu. Nunca lhe ouvi
uma fala mais alta, poucas visitas, uma por ano… nunca lhe perguntei nada… de manhã cedinho, dava um leve toque na
porta, ela trocava o pequeno pão por um ovo! Cumprimentávamo-nos com um olhar e
um leve sorriso. Eu tocava o meu boné em sinal de respeito, a velhota fazia um
pequeno gesto com a cabeça. E lá
fazíamos a nossa troca, todos os dias, em segredo! Ou teria muitos pedintes na porta, não podia
ser! Eram tempos de miséria. Um dia,
pouco tempo antes de eu cair na cama, batia na porta da velhota, umas quantas
vezes,,, e forcei a entrada…. Estava fria e com o pãozito do dia anterior
agarrado ao peito… parecia estar feliz, tão calma era a sua expressão… sempre
me perguntei se teria morrido a rezar, no banquito á sua frente tinha um terço
de madeira… sem querer chorei… seria a minha única amiga… fiquei
verdadeiramente sozinho.. fui a casa
buscar dinheiro, o que achei que seria o seu funeral e coloquei numa lata…
corri a chamar o sacristão da igreja, mostrei-lhe a lata, e sai rapidamente.
Fui abrir a
taberna e nunca falei no assunto a ninguém. Comentavam os pobres bêbados, que
não sabiam como a velha senhora tinha conseguido dinheiro para o funeral, para
o caixão mais propriamente dito… amigos
não lhe conheci, família também não…
Dizem-me que
alguém pediu por mim a Deus, terá sido esta velha senhora? Era apenas um
pequeno pão e duro… por um ovo… um ovinho! Nada mais me podia dar! Mas não lhe
pedi qualquer pagamento… meu Deus, não
matei ninguém, mas também nada de bom fiz… é isso não é? poderia ter feito muito mais? É verdade que
alguns em vez de irem para casa, ali gastavam tudo… o dinheiro muitas vezes
para a família comer… como fui guloso, apenas pensei em mim…. Quanta desgraça
causei… ao servir vinho, levei a que outros desamparados morressem sem o
auxilio necessário… com fome… hoje
lamento muito mais do que quando estava a servir… mas eram desesperados, pobres … homens
derrotados pela dureza da vida… como eu seria se não tivesse a taberna…. A
alguns mandava para casa…. Iá ia aconselhando: vai para casa… mas a vida era assim…
Que pediu
por mim? Quem se lembrou então de mim?
Espero um dia poder agradecer…
Vou com
vocês? Esperam-me? Para onde vou?
Descansar,
oh descansar…. Há muito não descanso em paz com medo de ser atacado…
Agradeço a
todas as almas boas que velaram por mim. Obrigado por registares as minhas
palavras, são um pedido de desculpa aos muitos que eu não soube ajudar… lamento
verdadeiramente.
Obrigado,
vou aprender a ser mais corajoso e melhor.
Joaquim Lemos ,
Taberneiro arrogante.