Já fui luz, já fui bom, já fui pai, mãe, filho, avó, avô, vizinho, policia, talhante, merceeiro, padeiro e mendigo… já vivi muitas vidas, se alguma foi proveitosa? Diria que em todas elas aprendi alguma coisa, mas não o que poderia ter sido,… perdi muito tempo preocupado com o que os outros diziam… umas vezes fui mais pobre, noutras vidas, mais abastado, e uma delas quis ser mendigo, não me foi imposto, pedi eu esta prova… quis entender realmente o valor de coisas tão simples e grandiosas, como o calor do sol, um olhar, um abraço de um amigo, de um vizinho… o valor de um copo e água, de um pão oferecido com carinho…

Quis olhar os olhos das pessoas que passavam…, olhar de baixo para cima, ver que muitas passavam a correr, e mais vazias ainda do que eu… calçadas, vestidas, penteadas… mas mais infelizes e vazias do eu… solidão e medo… foi o que vi mais… presas a objectivos matérias:e sem qualquer sentido sobre o que será o futuro… fantoches manipulados apenas pelos desejos terrenos… completamente inconscientes… sem acreditar que somos eternos,,,
Falo agora assim, contudo eu era exatamente como estes de quem agora lamento a sorte,,, Foi preciso chegar a este estádio de dependência da boa vontade alheia para sobreviver, para olhar bem no fundo de mim mesmo e reconhecer que poderia ter feito muito melhor, poderia talvez ter evitado esta vida de mendicidade… não foi fácil.. e nos primeiros tempos até me revoltei… fui eu que quis a experiencia, contudo, começando-a a viver, quis desistir… revoltei.me! Era muito difícil estender a mão… pedir por tudo uma oportunidade de trabalho e não a obter ou não conseguir mantê-la…. O corpo fraco, a acusar os efeitos de excessos kármicos passados – tudo se paga…
Acredito que foi o melhor para mim, acho que a experiência me ensinou a ouvir com os ouvidos e a “ouvir” com os olhos… o nosso Ser fala de tantas formas… basta observar, basta querer ajudar...
Se recomendo a alguém a prova da mendicidade, não! São dias muito dificieis, cheios de perigos, desilusões e mágoas. Apenas nos últimos dias dessa vida – poucos meses; realmente consegui reflectir sobre tudo o que vivi… aprendi a dar valor a pequenas coisas, e são as pequenas coisas que compõem o dia a dia… São nos detalhes que mais se aprende a vida…
Quando damos por certo, a família, a casa, o trabalho, não as valorizamos, quase que as desprezamos... e todos os dias temos de cuidar, agradecer, lutar por amar o mais puramente possível, como gostaríamos que nos cuidassem também,,, quem não gosta de ser amado, cuidado, sentir útil e apreciado? Mas fazemos sempre por o merecer? Eu não o fiz…. Foi preciso chegar a este estado de pobreza total para me lembrar, para sentir falta de qualquer coisa, embora não soubesse exctamente o quê, um sentimento de frustração e revolta me assaltava de vez em quando…
Trabalho neste centro de acolhimento à vários anos, mas chegou a hora de parar e reflectir sobre o que vai ser o meu futuro. Uma coisa é certa, ainda não estou preparado para viver uma vida totalmente feliz e abastada. Tenho de me obrigar a mim mesmo a continuar a ser humilde. Não quero voltar a falhar, nem perder mais tempo.

Pedi para deixar o meu testemunho, é o marco do meu novo começo… Agradeço-te teres recebido as minhas palavras loucas, oxalá sejam úteis para alguém… apenas quero dizer: aproveitem o tempo de forma útil para o vosso futuro! A vergonha de ter falhado, doí muito…
Até um dia! Quem sabe…
Minha gratidão para todos os que me deram a mão e uma oração.
Frederico C.
Setúbal - 1974